"MICO GLOBAL"
( 11 TRILHÕES
PERDIDOS !!!)
( Antonio Luiz M. C. Costa )
Mas não adianta procurá-los, pois
desapareceram nos buracos negros das fraudes contábeis e das análises
enviesadas ...
Nos últimos 26 meses, o mercado financeiro global perdeu pelo
menos US$ 11,5 trilhões.
Isso é mais que toda a produção dos Estados Unidos
no ano passado, mais que 36% do produto mundial bruto.
Imagine essa quantia dividida entre os 3 bilhões de homens, mulheres
e crianças que sobrevivem com menos de dois dólares por
dia: seriam US$ 3.800 (R$ 10.700) para cada um, o suficiente para dobrar
seu padrão de consumo por sete anos.
Outra alternativa fantasiosa: pagar toda a dívida externa de todos
os
países periféricos e ainda lhes destinar US$ 9 trilhões
em investimentos, distribuídos proporcionalmente à sua população.
O Brasil teria a dívida zerada e ainda receberia mais US$ 310 bilhões
- 2,5 vezes o que de fato recebeu, na forma de investimento direto externo,
de 1997 a 2001.
A Índia teria direito a US$ 1,9 trilhões que, aplicados,
poderiam mais que dobrar sua renda per capita. Para sempre.
Em março de 2000, as empresas com ações negociadas
nas bolsas de valores em todo o mundo valiam US$ 38,1 bilhões no
mercado.
Hoje, valem meros US$ 26,6 bilhões, menos do que em 1998.
Não é tudo, pois empresas de capital fechado e títulos
de países emergentes também perderam valor, num montante
mais difícil de estimar.
Muitos desses valores eram virtuais.
O valor de mercado de uma empresa é a multiplicação
do número total de suas ações pela sua cotação
corrente, que, às vezes, resulta da negociação de
uma parcela ínfima do seu capital.
Não significa dinheiro realmente investido na empresa, nem uma
avaliação realista do seu patrimônio ou do seu potencial.
Mesmo assim, o sumiço tem conseqüências para a economia
real. Era uma riqueza que os investidores do mundo julgavam possuir e
poder converter em patrimônios mais reais e que as instituições
bancárias aceitavam como garantia de transações financeiras.
A alta desses papéis fez seus proprietários acreditarem
estar enriquecendo muito rapidamente sem precisar poupar um centavo e
ter dinheiro sobrando para consumir e fazer investimentos arriscados,
inclusive em países periféricos.
Países que, por sua vez, acreditaram contar com esses capitais
e com a regularidade desse fluxo de aplicações e reformaram
- ou deformaram - suas políticas econômicas de acordo com
essa expectativa.
Abriram seus mercados, privatizaram empresas estratégicas e se
adequaram aos mandamentos neoliberais de Wall Street, esperando com isso
atrair algumas migalhas desses fabulosos recursos: o valor negociado na
Nasdaq em março de 2000 foi equivalente à soma da dívida
externa dos países periféricos.
Esses países já haviam tido um bocado de frustrações:
a crise mexicana no final de 1994, a crise asiática em 1997, as
crises da Rússia e do Brasil em 1999.
Entretanto, enquanto o mercado global estava em alta, restava a esperança
de que essas perturbações eram momentâneas. O dinheiro
voltaria a fluir assim que esses países fizessem alguns ajustes
e os analistas dos grandes bancos de investimento tomassem sua Maracugina.
Agora, isso ficou muito mais difícil, para não dizer impossível.
Além de terem 30% menos capital que há dois anos, os investidores
globais ficaram ressabiados com todo tipo de risco.
Primeiro, estrelas das mais brilhantes da "nova economia",
entusiasticamente recomendadas pelos mais prestigiados analistas do mercado,
desapareceram quase sem deixar rastro.
Depois, foi a vez das jóias da coroa do império norte-americano,
as mais modernas, poderosas e admiradas das transnacionais, mostrarem
que não passavam de pedaços de vidro colorido.
Numa sucessão de escândalos que parece longe de terminar,
Enron, WorldCom, Xerox, Merck, Qwest e Bristol-Myers foram apanhadas forjando
resultados num montante que já soma US$ 51,7 bilhões - algo
como o PIB do Peru - e perderam a confiança do investidor no resto
de seus balanços, que já chegaram a valer US$ 625 bilhões
- mais que o PIB do Brasil.
Quando tudo que é sólido se desmancha no ar, quem vai
querer aplicar em países que os investidores norte-americanos -
quando tinham alguma noção de sua existência - sempre
consideraram frágeis, ineficientes e corruptos?
Mesmo que a retomada comece logo, o mercado global pode levar uma década
para recuperar os índices e o otimismo de 2000.
Muitos países periféricos não podem esperar tanto tempo.
Um ano e meio de maré vazante nos mercados financeiros foi suficiente
para quebrar o país mais dependente de capital estrangeiro, a Argentina.
A
Argentina, como outros países, deformou sua política econômica
atrás de migalhas de um bolo que agora se vê recheado de
vento
Seis meses depois, também a Turquia balança à beira
do abismo, apesar de considerada estrategicamente vital pela Casa Branca.
O Brasil não está livre desse risco, mesmo que os eleitores
decidam votar no único candidato que o tal mercado parece considerar
aceitável.
Uma das conseqüências mais temidas do estouro da bolha especulativa,
porém, ainda não deu as caras. Durante os anos de exuberância
das bolsas de valores, parte do crescimento do consumo nos EUA foi atribuído
ao "efeito riqueza".
Mesmo sem ter poupado ou conseguido um acréscimo substancial em
seus salários, os consumidores da classe média alta sentiam-se
mais ricos graças à rápida valorização
de suas carteiras de ações.
Estimou-se que cada dólar "ganho" dessa maneira gerava
3 a 5 cents de consumo. Parece pouco, mas para os EUA seriam mais de US$
100 bilhões por ano de 1995 a 1999, cerca de 80% do déficit
em conta corrente do país.
Seria de se esperar, por simetria, que a queda das bolsas tivesse causado
um "efeito pobreza": uma queda do consumo na mesma proporção,
resultando num encolhimento de 15% a 20% das importações
e num sério golpe para o comércio mundial.
Os norte-americanos, porém, continuaram gastando desbragadamente,
tanto em bens de consumo quanto em imóveis.
O motivo pelo qual o consumo ainda não caiu é um enigma
até para os economistas mais respeitados.
Paul Samuelson, por exemplo, em entrevista a CartaCapital ("Prudência
de mestre", nº 191), contentou-se em dizer que "é
preciso aceitar fatos mesmo quando não se pode explicá-los".
A resposta, talvez, esteja num fenômeno mais freqüentemente
visto em países sujeitos a crises de hiperinflação,
congelamentos de contas bancárias, expurgos de correção
monetária e pacotes mirabolantes: o consumidor inseguro quanto
ao futuro de suas poupanças trata de gastá-las em bens de
consumo e imóveis antes que elas evaporem.
O fluxo de investimento estrangeiro direto que financiava a produção
dos EUA passou a financiar o consumo.
Para os norte-americanos, vale a pena: a dívida externa dos EUA
é quase igual à dívida combinada de todos os países
periféricos. Mas, enquanto esses pagam mais de US$ 300 bilhões
anuais para rolar sua dívida de US$ 2,5 trilhões, os EUA
gastam apenas US$ 20 bilhões com a sua, que é de US$ 2,2
trilhões.
Mas como esses trilhões apareceram e sumiram? Acontece que as
ações, como todos os papéis financeiros, são
avaliadas de acordo com o lucro que se acredita possam oferecer, dando-se
um desconto proporcional ao risco de que esse lucro não se concretize.
Ao contrário dos títulos de renda fixa, porém,
o lucro proporcionado pelas ações não é constante.
Por um lado, isso é um fator de risco: o resultado pode ser menor
que o esperado, ou mesmo negativo.
Por outro, é uma oportunidade: esses papéis representam
fatias de empresas que na média devem crescer proporcionalmente
à economia do país. Algumas delas, mais ainda.
Da década de 50 à de 80, o crescimento do lucro das empresas
nos EUA, como em qualquer parte do mundo, acompanhou o crescimento do
PIB, uma vez que a divisão da produção entre capital
e trabalho também manteve certa estabilidade.
Dada a maneira do mercado avaliar os riscos, em média as ações
valiam cerca de 16 vezes o lucro esperado para o próximo ano.
De 1993 a 1997, o crescimento médio do lucro empresarial foi
de 13% ao ano - muito superior ao crescimento do PIB - e a volatilidade
do mercado foi excepcionalmente baixa.
Obviamente, a participação dos lucros líquidos das
empresas negociadas em bolsa na produção nacional aumentou,
de cerca de 7% para 10%.
As razões para isso estiveram provavelmente relacionadas ao aparente
desaparecimento da ameaça do comunismo, que antes moderava a tendência
das empresas a promover concorrência desleal, aprofundar a concentração
de renda e explorar a força de trabalho ao máximo.
Desregulamentação e reengenharia eram as palavras de ordem.
Aumentaram as horas trabalhadas e aumentou a produtividade, mas não
os salários reais.
O número de empregados nos grandes negócios caiu, enquanto
pequenos negócios desapareceram ou eram absorvidos, facilitando
o crescimento das empresas negociadas em bolsa.
A extrapolação ingênua desse crescimento para o
médio prazo permitiu que essas ações chegassem a
valer 30 vezes seu lucro previsto, ou mais, proporcionando enorme lucro
a seus donos.
Passou-se a considerar que o primeiro e único mandamento ético
dos executivos era o de "agregar valor" à empresa - isto
é, à avaliação da empresa pelo mercado.
Gratificações cada vez mais polpudas lhes foram oferecidas.
Não mais proporcionais ao lucro, mas à cotação
que suas empresas atingissem na bolsa.
Fossem quais fossem os meios, incluindo fusões espetaculares,
demissões em massa e espetáculos de relações
públicas.
O principal meio para isso foi dar-lhes opções de compra
de sua própria empresa. Trocado em miúdos, isso significa
a possibilidade de comprar ações a um preço pré-estabelecido,
dentro de um certo prazo.
Se o executivo conseguisse fazer as ações subirem acima
desse preço, podia comprá-las da própria empresa
e revendê-las imediatamente, com gordos lucros.
O curioso é que essa prática viola um dos princípios
mais sagrados do capitalismo: o de que não existe almoço
grátis. O executivo ganha uma fortuna, aparentemente sem custo
algum.
Na verdade, não é bem assim: a companhia tem um custo
de oportunidade, pois poderia ter vendido suas ações no
mercado por um valor maior.
Entretanto, todas as tentativas de obrigar as empresas a contabilizar
essa despesa fracassaram. Devia ter sido óbvio que essa tendência
tinha limites.
A partir de 1997, a redução do desemprego pelo crescimento
econômico começou a frear a concentração da
riqueza nacional nas mãos das grandes empresas.
Wall Street não se deu por achada. A resposta foi a ideologia da
"nova economia": a evolução da tecnologia e a
mudança da mentalidade do "público" em relação
ao lucro empresarial seriam suficientes para garantir que as cotações
das ações continuassem a crescer em ritmo acelerado no longo
prazo. Livros como Dow 36.000, Dow 40.000 e Dow 100.000 tornaram-se best
sellers.
A moda da internet permitiu que empresas que nada mais tinham que uma
idéia e um nome, ambos duvidosos, fossem rapidamente avaliadas
em bilhões de dólares.
Analistas como Henry Blodget, depois de acertar um chute ousado no curto
prazo, tornavam-se autoridades com o poder de avalizar o lançamento
de ações de qualquer empresa a praticamente qualquer preço,
sem precisar dar explicações.
Só anos depois se viu como a única base técnica
dessas recomendações era o desejo dos bancos de investimento
de fazer lucros com o lançamento desses papéis no mercado.
Enquanto isso, executivos ansiosos por ganhar cada vez mais com opções
começaram a descobrir as virtudes da contabilidade criativa.
Por que esperar pelas receitas reais, quando meras projeções
estavam sendo tão bem-aceitas pelo mercado?
Por que não tratar algumas despesas como investimentos?
Por que registrar dívidas, se a desregulamentação
permitia escondê-las numa obscura subsidiária nas Ilhas Cayman?
Exercer opções de compra resultou nas maiores remunerações
jamais pagas na história da humanidade.
Timothy Koogle, executivo-chefe da Yahoo!, embolsou um total de US$
1,72 bilhão - um salário 8.600 vezes maior que o do presidente
Clinton - num único ano, 1999. Sua empresa chegou a valer mais
de US$ 100 bilhões, hoje reduzidos a US$ 7,6 bilhões.
Steve Case, da AOL, ganhou US$ 1,1 bilhão, um pouco mais merecidos:
aproveitou a alta para comprar a Time Warner, ancorando a riqueza virtual
num ativo algo mais palpável. Mesmo assim, os US$ 350 bilhões
que as duas empresas valiam às vésperas da fusão
se reduziram a US$ 62 bilhões.
Em 1999, mais de 4% dos US$ 280 bilhões em subscrições
através da Nasdaq e da Bolsa de Nova York foram diretamente para
os bolsos de presidentes das 200 maiores empresas (sem contar outros executivos).
Sua remuneração mediana foi de US$ 46 milhões na
"nova economia" e US$ 13 milhões na "velha".
Ironicamente, quando começou a ficar cada vez mais evidente que
o comportamento do mercado pouco tinha a ver com a economia real, houve
quem exigisse que os ministérios alterassem os métodos pelos
quais elaboravam as contas nacionais.
Não era possível que os números do PIB e da produtividade
continuassem tão medíocres quando empresas e analistas mostravam
resultados tão maravilhosos.
Pressionados, os burocratas acabaram de fato retocando sua metodologia
para sacar números mais otimistas.
Não se sabe até que ponto os números macroeconômicos
foram inflados, mas a distorção na contabilidade das empresas
já começou a vir à luz, assim como a deturpação
da lógica dos analistas do mercado, dos contadores e dos auditores
em busca de acomodar suas conclusões à expectativa de crescimento
que as empresas precisavam mostrar para o público.
A maior parte dessa distorção ocorreu na era Clinton.
Entretanto, o governo Bush não fez nada para corrigi-la. Ao contrário,
criticou seu predecessor por sobrecarregar as empresas de exigências
e regulamentar excessivamente o mercado e anunciou uma SEC (o equivalente
norte-americano da CVM) mais cordata.
Para mostrar o que queria dizer, nomeou para o órgão fiscalizador
um homem da Arthur Andersen.
O resto é a história que se desdobra sob nossos olhos.
As novas subscrições que supostamente justificam a existência
das bolsas de valores caíram ainda mais que as cotações
das ações: de US$ 356 bilhões em 2000 para US$ 110
bilhões em 2001, uma queda de 70%.
Em 2001, apenas 8% do investimento empresarial total pôde ser financiado
pelas bolsas ante 27% em 2000. Vai piorar: no primeiro trimestre deste
ano, a captação de capital de risco para setores de alta
tecnologia foi 62% inferior à do mesmo período do ano passado.
Num artigo publicado na segunda-feira 8, no site Economy.com, o economista
Craig Thomas argumentou que não há razão para procurar
culpados: os analistas eram sinceros em sua tentativa de adivinhar o futuro
e, afinal, por alguns anos, muitos norte-americanos puderam ter empregos,
realizar seus sonhos e viver melhor do que teriam feito se a bolha não
tivesse existido.
Assim como a Enron, esqueceu-se de contabilizar o passivo: o custo das
distorções no planejamento e nos regulamentos econômicos,
que resultaram dessas avaliações brutalmente erradas da
realidade, para bilhões e bilhões de pessoas que vivem entre
Buenos Aires e Jacarta.
E ainda há quem gaste papel, tinta,
bits e ondas hertzianas para anunciar as broncas e temores dos expoentes
do tal mercado. Pior: há quem continue acreditando neles.
( Antonio Luiz M. C. Costa )
FONTE: CARTACAPITAL
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